Chris Eaton, diretor de integridade da ICSS, tem
opinião forte: simulação pode levar à corrupção
(Foto: André Durão/Globoesporte.com)
Chris Eaton, um australiano, é diretor de integridade da ICSS, o Centro Internacional de Segurança no Esporte, entidade sem fins lucrativos criada no Qatar para investigar, em diálogo com a Fifa, questões relacionadas à proteção aos atletas, ao comportamento deles em campo e ao combate à corrupção, expressa principalmente com a venda de resultados. Quando vê um jogador de futebol simulando, fingindo, enganando o árbitro, o dirigente sente um temor: de que aquele sujeito de chuteiras seja um corrupto em potencial.
É uma visão combativa, certamente vista como exagerada por muitos. E que amplia a discussão sobre os limites da simulação em um campo de futebol. Para Eaton, no momento em que um jogador abre brecha para o fingimento com o objetivo de vencer uma partida, a corrupção está mais viva; se o atleta dá uma concessão à burla da regra, também faz uma concessão em seu caráter, e aí abre o caminho até para ajeitar resultados - a grande preocupação dele na ICSS.
Será? No futebol brasileiro, tão acostumado à encenação, a opinião de Chris Eaton pode soar radical. É uma questão de estabelecer onde fica a fronteira entre o legal e o ilegal, o moral e o imoral: se o fingimento é mais uma face da esperteza ou se é pura e crua trapaça. Em um debate com mais perguntas do que respostas, o GLOBOESPORTE.COM ouviu personagens de diferentes áreas do futebol para discutir os limites da malandragem, do jeitinho brasileiro, nos campos de futebol - para tentar entender de onde viemos e para onde vamos.
Luiz Adriano se desculpa, Seedorf faz pedido
"O choro é livre", escreveu o brasileiro Luiz Adriano, atacante do Shakhtar Donetsk, da Ucrânia, no dia 20 de novembro, em seu perfil no Twitter. No instante em que usava o limite de 140 caracteres da rede social para ironizar seus críticos, o jogador já era alvejado por meio mundo por causa do gol que acabara de marcar sobre o Nordsjaelland, da Dinamarca, pela Liga dos Campeões da Europa. Depois de a arbitragem parar o jogo para atendimento médico a dois atletas, Luiz Adriano pegou uma bola que aparentemente seria devolvida ao adversário, driblou o goleiro e fez o gol (recorde no vídeo). Ao fintar a gentileza, um mandamento das quatro linhas em lances de lesão, Luiz Adriano ajudou sua equipe a golear por 5 a 2, mas se deu mal depois: levou um jogo de suspensão, teve que pedir desculpas públicas, virou sinônimo de desrespeito ao fair play. E apagou a mensagem que deixou no Twitter...
Os lamentos, pelo extremismo do lance, foram quase unânimes - Luiz Adriano argumentou que
estava desatento na jogada, incapaz de perceber que era um momento de fair play. A revolta se sustentou em uma percepção: de que mais do que um desrespeito à regra, foi um momento de desconsideração à moral do esporte - esse conjunto invisível de normas que dita o comportamento dos atletas enquanto estão competindo.
O lance de Luiz Adriano pode ser cruzado com declarações dadas em outubro por Clarence Seedorf. O holandês do Botafogo se mostrou incomodado com aquilo que ele diagnosticou como um hábito do jogador brasileiro: simular, fingir, tentar levar vantagem (observe no vídeo ao lado).
- O futebol tem uma importância enorme, socialmente falando, e os jogadores precisam ser mais leais. Ser malandro parece um pouco demais. É importante que haja solidariedade, que sejam honestos. (...) Jogar-se no chão para o árbitro entender mal a jogada é uma malandragem, e não respeito isso - disse o jogador ao "Esporte Espetacular".
Esperteza ou trapaça? Outra face do talento ou concessão à desonestidade? Abaixo, o leitor encontra a visão de personagens de campos variados do futebol sobre o assunto.
De onde viemos: a sociedade, a cultura, a arbitragem
Paulo Autuori treina a seleção do Qatar. O Oriente Médio é mais uma cultura a rechear a carreira do técnico brasileiro, campeão por clubes como Botafogo, Cruzeiro e São Paulo. Ele já teve vivências na América do Sul (Peru), na Europa (Portugal) e na Ásia (Japão). Conhece diferentes sociedades e os códigos que as regem. E parte de uma ideia inicial ao analisar o comportamento dos atletas: de que absolutamente nada no futebol brasileiro pode ser observado fora do contexto social do próprio país.
Paulo Autuori, técnico do Qatar, alerta contra a
hipocrisia no futebol Foto: Divulgação)
- O futebol é um fenômeno sócio-econômico. Não podemos deixar de associar o lado cultural com as coisas que se passam na sociedade. Acho muita graça quando um cidadão comum fica p... porque alguém tenta passar a perna nele. O cara fica p.... Mas quando é o time dele que ganha num lance de malandragem, ele acha legal. Como cidadão, não gosta de ser ludibriado, mas se transforma quando é torcedor e admite essa malandragem para que seu time ganhe. É uma contradição. Cheira a hipocrisia. Nunca vou deixar de associar esse lado social desse lado esportivo. Trabalhamos no futebol, mas existe uma vida por trás - opina o treinador, por telefone, desde Doha, no Qatar.
Ou seja: um sujeito se irrita quando alguém fura a fila, quando o ônibus não para no ponto, quando o teleatendimento de uma empresa qualquer o segura durante eternidades na linha, mas aceita que seu centroavante cave um pênalti. Ronaldo Helal, sociólogo, professor da faculdade de comunicação social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, corrobora a visão de Autuori ao lembrar que a malandragem é um elemento da cultura brasileira - por vezes louvado, visto por um viés positivo, de criatividade, de inteligência. Ele lembra de dois personagens clássicos de nossa literatura: Leonardo, em "Memórias de um Sargento de Milícias", de Manuel Antônio de Almeida, e Macunaíma, o herói sem caráter de livro homônimo de Mário de Andrade. Os malandros cantados por Chico Buarque, Bezerra da Silva ou Zeca Pagodinho ou encenados por Hugo Carvana, Nuno Leal Maia ou Joel Barcelos também são exemplos.
- Isso não está no eu. Está no nós. É da literatura, e vai para a imprensa. O aluno passa no vestibular e mente que levou uma vida normal, que não estudou tanto assim. O repórter pega e deixa a edição mais bonita. É assim. É uma coisa cultural mesmo.
Jefferson vê simulações como um defeito do atleta
brasileiro (Foto: Cezar Loureiro / Agência O Globo)
Daí para o campo, é um passo. Parece claro que se trata de uma característica do jogador brasileiro. Mas a dúvida, maleável de acordo com a opinião de cada um: é um defeito? Para Jefferson, goleiro do Botafogo e da seleção brasileira, é.
- Cada país tem uma cultura. Na Argentina, os caras são catimbeiros. O brasileiro gosta de ser esperto, quer ser malandro. E acha que é mais esperto que o outro. É um defeito. É feio. O jogo fica ruim. E sabemos que os goleiros também fazem isso. Às vezes, está 1 a 0 e o cara fica matando tempo - observa o jogador.
Mas a visão crítica não é unânime. Há quem veja nessa malandragem uma simples ação de jogo, um macete legal para vencer a partida. Zinho, ex-jogador da seleção brasileira, ex-treinador do Miami FC e ex-diretor do Flamengo, acha válido, por exemplo, um atleta forçar o terceiro cartão amarelo em seu time quando está convocado para defender a Seleção. Em lances de simulação, ele opina que cabe mais ao árbitro punir do que ao jogador evitar.
- A questão do cartão é até normal. O cara já vai ficar fora do jogo. Não me parece que seja burlar a lei. E a simulação, cabe ao árbitro punir. Tem coisas que fazem parte, que são da atmosfera do futebol, mas não podem ser ilegais. Se o jogador simula, o árbitro tem que punir. Se não pode proibir o jogador de matar tempo, tem que dar acréscimo.
Em 2011, Kleber Gladiador, hoje no Grêmio, teve um lance parecido com o de Luiz Adriano em jogo entre o Palmeiras e o Flamengo. A bola foi parada para atendimento médico, e parecia que seria devolvida aos rubro-negros. Mas o atacante partiu com ela na direção do gol - chutou para fora (o lance está no quadro abaixo). Depois, declarou:
- Acho que tem muita hipocrisia. O fair play é bom só para tua equipe, né? Para a equipe dos outros, não é bom. É legal o juiz falar que só pode bater a falta depois do apito e mesmo assim o cara bater? É legal? É legal o jogo parar e o cara (em referência a Ronaldinho Gaúcho) tentar tocar por cima do Marcão (o ex-goleiro Marcos) para ganhar tempo? Onde está o fair play?